28/01/2006

Fragmentos

Segundo Floro, Viriato poderia vir a ser o Rómulo da Espanha. Mas, em face da civilização romana que ia progredindo com a conquista, um Rómulo do Ocidente vinha já fora de horas, nos parece. A independência da Lusitânia necessitava, sim, de um homem que soubesse repelir a invasão estrangeira, como fez Viriato, mas que ao mesmo tempo organizasse o plano gigantesco da fusão de trinta povos independentes, senão hostis, e que estabelecesse entre eles a paz e segurança que lhes faltava. Aqui está em resumo o quadro que Estrabão nos pinta da Lusitânia pré-romana. O seu solo é rico em metais de toda a espécie, abundante em toda a qualidade de frutos, excelente para a criação de gados; mas todas estas indústrias estavam arruinadas e haviam sido por fim abandonadas, porque as classes produtoras estavam à mercê dos bandos armados, que as salteavam de improviso, metendo tudo a saque. Tendo de interromper a cada momento o trabalho, para correr às armas, e defender os seus haveres, esta gente desanimara de tudo, e acabara por adoptar o ofício dos seus perseguidores. Daqui a alcunha de “ninho dos ladrões”, dada à Lusitânia inteira. Sem dúvida há nesta pintura exageração evidente. Se este bandoleirismo fosse geral, é de primeira intuição que ele acabaria por si mesmo, à falta de alimento. O que porém é provável é que a classe dominante dos povos lusitanos fosse um militarismo brutal e insolente, que não reconhecia outro direito senão o da ponta da espada, e fazia dele modo de vida. Do espanhol em geral, dizia Justino que a sua paixão era a guerra; quando a não tinha fora, procurava-a dentro de casa. Dos galegos, um ramo dos lusitanos, diz ainda que as mulheres se empregavam nas ocupações domésticas e na lavoura, enquanto que os homens só se davam à guerra e à rapina. A guerra era um ofício, um modo de vida. Ora imagine-se qual será o teatro deste militarismo de profissão em povos pequenos e desunidos, que nunca justificaram a guerra com o pretexto dum alargamento de território, dum engrandecimento político. Infalivelmente é sobre os povos vizinhos que eles planeiam as suas correrias, com a mira no saque. É isso mesmo o que nos confirma a inumerável quantidade de cidadelas pré-romanas, em ruína pelos nossos altos, e que revela bem o grau de desconfiança em que cada povo vivia em relação ao seu vizinho. Dando a estes bandos o nome de ladrões, os gregos e os romanos eram justos, nos parece. Esqueciam apenas que os grandes vultos dos seus séculos heróicos não tinham sido outra coisa, e que o que eles lançavam à conta de perversão moral era o produto das ideias duma civilização atrasada, pela qual os austeros censores tinham passado também. Neste período chamado “heróico”, ser ladrão ou pirata não é vergonha nenhuma. Ulisses, por exemplo, conta com toda a simplicidade a um dos seus hóspedes, como surpreendeu traiçoeiramente uma cidade da beira-mar e a saqueou valentemente. A vergonha era efectuar estas empresas militares em volta a casa “com as mãos vazias”. Se romanos e gregos se encontravam agora já longe desse heroísmo selvagem, tinham a agradecer o benefício não tanto a si, como às civilizações mais adiantadas com que se puseram em contacto. O isolamento dos povos do Ocidente explica bem a perpetuação deste anacronismo, que a cultura romana punha em maior relevo. O certo é que ele era um facto, e que o estado anárquico de toda a Lusitânia não tinha senão aqui a sua principal origem. Precisamente à frente destes bandos guerreiros é que se vai colocar Viriato.
No tempo de Viriato (Fragmento de um estudo)
Francisco Martins Sarmento
A Vida Moderna, Porto, 1880 — vol. — I, pág. 261

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