21/12/2005

Lusitanos! Uns mais que outros, mas somos todos...


Os Lusitanos são vistos como os antepassados dos Portugueses. Eram um povo celtibérico que viveu na parte ocidental da Península Ibérica. Primeiramente, uma única tribo que vivia entre os rios Douro e Tejo. Ao norte do rio Douro limitavam com os Galaicos e Astures na província romana da Galécia, ao sul com os Béticos e ao oeste com os Celtiberos na área mais central da Hispânia Tarraconensis.
A figura mais notável entre os lusitanos foi Viriato, um dos seus líderes no combate aos romanos!

14/12/2005

O Colar de Viriato


Viriato – O Colar dos Deuses é um romance histórico onde as guerras lusitanas e o assédio e destruição da cidade celtibera Numância constituem o pano de fundo da viagem que Marco Lúcio Numa, historiador romano, empreende, a mando de Cipião, o Africano, pela antiga Ibéria até às terras da Lusitânia com o objectivo de recolher informação sobre um personagem admirado, inclusive pelos seus inimigos: Viriato. O autor baseia-se nos testemunhos dos historiadores clássicos, tais como Políbio, Estrabão e Diodoro, para divulgar com rigor e verosimilhança uma série de acontecimentos históricos da época, nomeadamente os relacionados com a liderança extraordinária de Viriato na resistência à invasão romana.Por outro lado, Fernando Barrejón, romancista e poeta espanhol, impregna o romance com uma grande profundidade psicológica e beleza literária ao fazer ressaltar o grande conflito interior do romano Lúcio Numa, narrador, que se apaixona pelos costumes e sabedoria dos «bárbaros» lusitanos. «A sabedoria dos povos célticos representou uma grande descoberta para mim, porque, embora não esgrimam a lógica nem cultivem a retórica, experimentam, isso sim, as ideias puras que transcendem a linguagem. Com Icorbeles aprendi que existe uma vida inexprimível no outro lado dos conceitos.»
VIRIATO, O Colar dos Deuses, Fernando Berrejón, 1ª Edição: Novembro de 2004

Viriato na letra de Pedro Barroso

Viriato
Trago comigo uma guitarra para a viagem

na minha voz esta canção antiga
tenho nos olhos mais do que a paisagem
a memória e o sal da gente amiga
não feneceu ainda em mim o velho sonho
trago na ideia uma razão e um sentido
que eu tenho o mar, o fundo mar, por testemunha
e a esse mar que em mim navega tudo é devido
e há qualquer coisa em tudo isto
que eu não posso ou sei esconder
e que faz com que vos cante esta canção
é uma história um gesto antigo que eu nem sei como dizer
Viriato tem mil anos de razão
É do verde e fresco Minho que eu vos falo
e dessa calma alentejana que nos cala
e é em casa junto ao rio Tejo que me embalo
e é em Sagres que essa história mais nos fala
lá nas Atlântidas perdidas de um sonho
ou num velho cacilheiro que nos leva
e há nas ancas das varinas no Porto, na ribeira,
todo um mundo que nos lembra e que celebra
e há qualquer coisa em tudo isto
que eu não posso ou sei esconder
e que faz com que vos cante esta canção
é uma história um gesto antigo que eu nem sei como dizer
Viriato tem mil anos de razão
(letra e música de Pedro Barroso in CD "Cantos D' Oxalá", 1996)

Segundo Fernando Pessoa

VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste-
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada

Pensamento de Viriato

O mérito não está em fazer parte da maioria que desiste mas sim da minoria que resiste!

A Insígnia do Touro

A VOZ DOS DEUSES
I
Durante a Primavera fizemos pequenas incursões na Betúria, mais para sobreviver que para enfrentar seriamente os Romanos. Os nossos efectivos não permitiam uma ofensiva – Cúrio e Apuleio teriam uns dois mil homens, nessa altura – e só podíamos atacar de surpresa e em terreno conhecido.
Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, aquela Primavera foi para mim um período importante porque me habituei à vida de campanha, às longas marchas, a viver o dia-a-dia, a enfrentar o perigo constante. Habituei-me também ao lado menos brilhante da guerra, o espectáculo das aldeias saqueadas e das mulheres violentadas (coisa que nunca gostei de ver; mas alguns dos nossos eram especialistas nisso e os príncipes toleravam a prática, embora não a seguissem). Na verdade, o que menos me agradou foi sentir que éramos mais um bando de salteadores que um exército. Não havia objectivo, excepto viver à custa dos saques e matar Romanos.
Outro aspecto penoso mas inevitável da guerra é assistir à morte de camaradas com quem na véspera se partilhou uma refeição à roda da fogueira. Assim perdi o meu amigo Indibilis, que morreu durante um assalto, trespassado por uma lança. Vinguei-o matando o legionário que o atingiu. Antes de morrer, Indibilis ofereceu-me o seu capacete de bronze e pediu-me que, em troca, enterrasse o seu corpo. Cumpri esta vontade; fora um guerreiro corajoso e um bom amigo, sempre pronto a instruir-me no ofício da guerra.
Quando o tempo aqueceu, anunciando a chegada do Verão, um grupo de cavaleiros de além-Tagus veio até nós com mensagens para Cúrio e Apuleio. Os príncipes ouviram os recém-chegados em privado, mas logo a seguir convocaram uma assembleia de tropas. Os mensageiros, instados a repetir em público o que haviam dito aos comandantes, anunciaram que estava em preparação um ataque em larga escala, dos Lusitanos e dos seus vizinhos, contra a província Ulterior, para vingar enfim a traição do pretor Galba. Naquele momento, acrescentaram, formava-se uma coligação de reis, príncipes e chefes tribais; entre os povos que enviariam contingentes para a nova grande hoste contavam-se os Igeditanos, os Taporos, os Túrdulos de Aeminium e Conímbriga e também os Vetões, fiéis à aliança com a Lusitânia. Havia ainda muitos outros – ao todo, cerca de dez mil guerreiros. Alguns chefes, dos mais ilustres, tinham manifestado o desejo de propor a Cúrio e Apuleio que participassem na expedição e os emissários ali estavam: se a proposta fosse bem recebida deveríamos comparecer na grande assembleia que se ia realizar junto dos montes Hermínios.
O debate foi curto porque, afinal, os comandantes já haviam decidido aceitar o convite. Os mensageiros, que nos serviriam de guias, foram honrados com um festim – não muito abundante, já que todos nós devíamos ficar suficientemente sóbrios para partir ao romper da aurora, por isso a cerveja e o vinho foram
racionados. No entanto, quando me deitei sentia-me tonto; não por causa do álcool, mas pela excitação. Finalmente, Roma ia ter uma resposta, Camalo e Beduno poderiam repousar contentes no reino dos espíritos.
Atravessámos o Tagus não longe da cidade de Aritium Vetus. O rio – um dos maiores que eu vira até então – corria engrossado ainda pelas chuvas, mas os nossos guias conheciam o ponto ideal para a travessia, que se fez sem incidentes. Apesar das palavras de amizade e aliança, progredíamos com cautela e em ordem de combate. Na Ibéria, as relações entre os povos não eram pacíficas, mesmo quando se tratava de tribos aparentadas (ainda hoje isso acontece, de resto). As guerras tribais eram muito frequentes, sobretudo na Lusítânia, onde os povos montanheses atacavam os das planícies ou se guerreavam entre si por questões de gado, mulheres ou ofensas hereditárias.
Quando os últimos homens da hoste chegaram a salvo à margem norte, oferecemos libações às divindades do Tagus, em agradecimento por nos terem permitido atravessar os seus domínios, e retomámos a marcha. Eu estava alegre como um pardal; habituara-me à minha nova vida e não sentia falta dos confortos de Gadir.
Mesmo assim, por várias vezes fiquei chocado (embora nada dissesse) quando, à medida que avançávamos para o Norte, contactávamos com as tribos serranas, cujos costumes são ainda os dos seus antepassados. Tanto os povos da Bética – sobretudo os Turdetanos – como os Cónios são educados e civilizados. Um dos antigos reis do Cineticum, Gargoris, tornou-se mesmo famoso por ter descoberto as vinudes do mel, cujo uso introduziu na alimentação e nos ritos. Agora, eu deixara esse mundo e entrara num outro, mais antigo e brutal. Descobri que era verdade o que ouvira em Balsa, ou seja, que muitas divindades das terras altas exigiam sacrifícios humanos. Numa pequena cidade fortificada que encontrámos no nosso itinerário, os habitantes tinham acabado de ler os presságios nas veias de um prisioneiro, um homem da planície que o sacerdote oferecera a Bandiarbariaico. O espectáculo do cadáver aberto, envolto ainda na veste de sacrifício, revoltou-me o estômago.
Três dias depois de deixarmos o Tagus, avistámos ao longe a encosta dos Hermínios, que formam a mais alta serra da parte ocidental da Lusitânia. É uma região muito bela, de uma beleza agreste, bem diferente da paisagem que me era familiar.
Começámos a encontrar grupos de guerreiros que se dirigiam, como nós, para o sopé dos Hermínios, respondendo a um apelo idêntico. As saudações trocadas eram cerimoniosas e cada corpo de homens prosseguia a marcha separadamente. Até que fosse concluída uma aliança formal, selada por juramento, não se podia falar em exército lusitano.
Compreendia-se, aliás, a razão que motivara a escolha daquele ponto de encontro. A região era um imenso vale, uma espécie de "cova" gigantesca delimitada por serranias e colinas, com espaço bastante para que várias hostes acampassem a certa distância umas das outras. Só os notáveis e as suas escoltas participariam na assembleia.
Viajámos durante mais um dia e recebemos ordens para acampar na orla de um bosque. Ficaríamos estacionados sob o comando de Apuleio, enquanto Cúrio partiria na manhã seguinte ao encontro dos outros chefes.
Fui escolhido para fazer parte da escolta que o acompanharia (uma honra que não esperava) e passei boa parte da noite a limpar as armas, o escudo e o capacete e a reparar estragos na minha couraça; além disso, tirei da bagagem a melhor das minhas duas túnicas. Sempre pensei que um guerreiro deve cuidar da sua aparência antes de participar em cerimónias ou entrar em combate, pois nessas circunstâncias ele representa, de certo modo, o povo a que pertence.
Enorme e alegre confusão reinava no local escolhido para a assembleia, nas margens de um regato. Escravos erguiam as tendas onde os chefes passariam a noite, enquanto bandos de mulheres com trajos coloridos, vindas das povoações próximas, preparavam as mesas para o banquete que encenaria a reunião. A cada instante cruzavam-se as insígnias das várias tribos, empunhadas por guerreiros a cavalo que trocavam saudações e gracejos ruidosos. No lado norte do recinto, onde se viam cinco aras de pedra muito antigas, sacerdotes ocupavam-se na construção das piras para os sacrifícios.
Cúrio tinha amigos entre os chefes presentes e logo se embrenhou em conversa com eles, deixando a escolta entregue a si própria. Dispersámos; e eu, que não conhecia ali ninguém, diverti-me a observar as raparigas – algumas bastante bonitas – que se afadigavam já em volta das fogueiras onde seriam assadas as peças de carne para o festim.
De repente, tive a sensação de que estava a ser observado e uma voz fez-me estremecer:
– Voltamos a encontrar-nos, filho de Tongétamo!
Girei sobre mim próprio e deparei com Viriato; precipitei-me para ele e abracei-o com tanta alegria como se fosse um irmão reencontrado. Não era preciso perguntar para saber que Viriato estava ali na qualidade de comandante; a mesma aura de poder que eu notara antes continuava a revesti-lo como se fosse um manto real – no entanto, ao contrário dos outros chefes, não usava um único adorno de ouro. As vírias que lhe cingiam os braços eram de bronze, envergava a mesma couraça de linho entrançado que vestia quando o conhecera e a única concessão aparente à solenidade da ocasião estava nas três grandes plumas vermelhas que enfeitavam o seu capacete.
Mal tinha começado a falar com ele quando uma fortíssima palmada nas costas me fez dar dois passos em frente e um berro amigo atroou os meus ouvidos:
– Olha, o nosso Coniozinho!
Era Táutalo, que já sabia por um dos meus camaradas que eu me alistara na hoste de Cúrio: "Quando me disseram que tinham arranjado um novato em Arcóbriga, percebi logo que eras tu", exclamou.
Trocámos informações, ou, melhor dizendo (já que eu não tinha notícias para dar), eles relataram-me as últimas novidades, tanto da Lusitânia e da Calécia como das terras submetidas aos Romanos. De tudo o que me disseram retive dois factos. O primeiro referia-se às dificuldades com que se debatia a dinastia usurpadora que governava Brácara: o descontentamento contra o rei era tão grande que este preferira manter-se na sua capital e não estaria presente na assembleia; quanto aos nobres da facção adversa; tinham receado ausentar-se deixando ao monarca o campo livre. Como resultado, a coligação que se preparava não poderia contar com os Brácaros – "o que para ti é uma boa notícia", comentou Viriato.
O segundo ponto importante era a situação no território romano, onde as autoridades não sonhavam sequer com a possibilidade de um ataque. O extermínio dos dez mil Lusitanos (sem falar dos vinte mil vendidos na Gália) era uma coisa ainda recente e criara um sentimento de segurança e a convicção de que a Lusitânia não poderia tão cedo criar problemas a Roma.
– Essa é a nossa arma mais importante – disse Táutalo – porque vamos cair de surpresa sobre eles e varrê-los até ao mar!
Viriato olhou-o com ar divertido, mas logo ficou sério.
– Até ao mar, não creio. E veremos, mesmo, até onde podemos varrê-los...
Nesse momento vieram chamá-lo. Intrigado com o que ele dissera, perguntei a Táutalo se havia razões para duvidar do nosso êxito. Encolhendo os ombros, respondeu-me que Viriato concluíra, por conversas com outros chefes, que seria difícil chegar a um acordo para estabelecer um comando único, centralizado num só homem.
– É um velho hábito nosso – observou – nenhuma tribo quer ceder o comando a um estranho, mesmo Lusitano, salvo em casos de grande emergência.
– Mas... e Púnico? E Césaro? E Cauceno...?
– Comandavam os seus povos. Oh, bem sei, tinham alguns aliados, mas nunca puderam tomar uma decisão importante sem primeiro reunir em conselho ou assembleia para discutir longamente. É um antigo costume e todos se agarram a ele. Viriato pensa que esse sistema não resulta quando se trata de combater os Romanos.
Táutalo abordou uma rapariga que passava com uma ânfora cheia de cerveja e tirou-lha, ao mesmo tempo que lhe lançava um galanteio. Ela riu, deu-lhe uma palmada na mão e cedeu-lhe a ânfora. Recusei a bebida que me era oferecida e perguntei ainda se Viriato ia dizer o que pensava na assembleia. Durante alguns momentos tive como única resposta o gorgolejar da cerveja, depois Táutalo limpou a boca às costas da mão e disse:
– É difícil. Viriato é conhecido e respeitado, mas não é um chefe de tribo e o nosso contingente é pequeno. Somos os melhores, disso não tenho qualquer dúvida, mas não passamos de mil cavaleiros e é preciso que nos vejam em acção para compreenderem certas coisas... entretanto, Viriato tem um aliado importante: Caturo, Rei dos Igeditanos. Cerca de trezentos homens de Igedium fazem parte do nosso grupo. E o mesmo se passa com os Vetões... mas não sei se isso basta.
Uma trompa soou chamando os chefes para a assembleia. Antes de me separar de Táutalo quis saber o que pensava ele, pessoalmente, da ideia de Viriato.
– Por mim está tudo bem desde que haja luta – disse a rir – mas o Comandante é que percebe de estratégia E tem sempre razão. Isso é também uma coisa que os outros só compreenderão mais tarde!
** *
A desordem e o barulho tinham acabado. Os chefes estavam sentados em toscos bancos de madeira, formando um vasto círculo, e atrás de cada um a respectiva escolta mantinha-se de pé, em formação. Era um espectáculo curioso: ao lado de homens da planície, como os de Aeminium, cujos nobres tinham envergado os seus melhores trajos, onde rebrilhavam ouro e jóias, viam-se ferozes guerreiros serranos com os corpos reluzentes de óleo e os longos cabelos presos atrás por uma correia, como se fossem entrar em combate logo a seguir.
Os discursos arrastaram-se, longos e inflamados, mas na sua maioria repetitivos. De vez em quando eu observava Viriato, que estava no lado oposto do círculo, quase na minha frente: quieto e calado, escutava com atenção mas não pedia a palavra. A insígnia da sua tribo, que representava um touro, era empunhada por Táutalo; este, colocado atrás do seu comandante como se quisesse protegê-lo de um ataque pelas costas, dava frequentes sinais de impaciência.
As suas previsões confirmaram-se. Viriato não falou mas Caturo advogou com insistência a escolha de um general que unificasse o comando das tropas. Todavia, o rei não participaria na expedição – tinha problemas nas fronteiras – e isso prejudicava os seus argumentos. No final, foram escolhidos cinco chefes (cujos nomes já não recordo) segundo os múltiplos parentescos e alianças que uniam ou dividiam os diversos povos.
O Sol declinava quando a assembleia dispersou e todos, num ambiente de azáfama festiva, se prepararam para o banquete que estava servido. Mais tarde, quando o vinho e a cerveja haviam alegrado ainda mais os convivas e os cânticos de guerra faziam tremer as copas das árvores, consegui encontrar de novo Viriato. Mantinha-se perfeitamente sóbrio (Táutalo, perdido de bêbado, gatinhava soltando urros). Perguntei-lhe até que ponto a decisão da assembleia prejudicaria o resultado da nossa empresa. Relanceando os olhos em volta, com um ar imperturbável, ele respondeu:
– Veremos. O que me aborrece é que o resultado, agora, vai depender dos Romanos e não de nós próprios. Afastou-se, reclamado por um dos seus homens, e eu fiquei a pensar como gostaria de combater sob as suas ordens. Mas dera o meu compromisso aos príncipes e um homem tem de respeitar a sua palavra.
No dia seguinte, a parte da manhã foi dedicada às cerimónias religiosas, que se iniciaram logo ao romper do Sol. Porcos, touros, bodes e cavalos foram oferecidos aos deuses guerreiros de todas as tribos ali representadas. O número de vítimas era tão elevado que pelo meio-dia o ar tornou-se quase irrespirável com o cheiro a sangue, gordura e carne queimada que se desprendia das aras e das piras. Os presságios anunciaram muitos perigos e alguns reveses, mas também uma grande vitória. Fizeram-se então os juramentos solenes tomando os deuses por testemunhas e realizaram-se jogos: corrida, luta corpo-a-corpo e esgrima. Ganhei um prémio (uma adaga com o cabo de prata) numa das corridas. Ao fim da tarde, o vale encheu-se de luzes – milhares de homens – os vários contingentes tinham-se concentrado – sentavam-se em torno dos fogos onde cozinhavam os alimentos para a ceia.
Quando me dirigia ao meu acampamento, alguém me chamou: Táutalo, que insistia em felicitar-me pela vitória. Acabei por sentar-me ao seu lado e bebi com ele e com os seus companheiros, todos do grupo de Viriato. Este já se retirara para a sua tenda, após ordenar que a confraternização não fosse muito longe na bebida.
– E aposto – disse Táutalo – que o Comandante se deitou vestido e armado, já pronto para a partida. Para ele, guerra é guerra, até mesmo durante a noite!
Esse comentário proporcionou-me um ensejo – que eu esperava – para lhe pedir informações sobre o passado de Viriato: que família era a sua?, como se tornara um chefe de guerra?, tinha sangue real?
Táutalo não se fez rogado; conhecia Viriato desde a infância e, tal como todos os outros, sentia um imenso orgulho por combater sob a sua insígnia. Contou-me que o pai de Viriato, Comínio, fora um pequeno chefe tribal do vale do Tagus. Segundo o costume lusitano, o primogénito era o único herdeiro dos bens familiares e por isso Viriato, o terceiro filho (o segundo era uma rapariga), vira-se forçado, como muitos outros jovens, a escolher a vida rude dos bandos que saqueavam as ricas terras do Sul. Sobressaíra rapidamente pelas suas qualidades; a apoiá-las estava a experiência que tivera como criança e adolescente: aos cinco anos, o pai, antes de partir para a guerra, deixara-o com a mãe e os irmãos sob a protecção dos Igeditanos, de quem era aliado. Comínio morrera em combate e Viriato crescera entre os guerreiros de Igedium e com eles se preparara para a guerra. Andara pelas serranias, guardara rebanhos, travara relações com os montanheses e quando atingira os dezasseis anos era um homem feito, curtido pelo vento e o ar livre, com enorme resistência física e uma admirável capacidade de comando. O primeiro bando em que se integrara depressa o elegera como chefe.
– Desde essa época – concluiu Táutalo – ele é o nosso comandante e há homens que se batem para entrar no seu bando. Não só por ele ser o mais forte, não só por ser justo; os guerreiros sabem que com ele no comando têm mais probabilidades de sobreviver e de vencer. Muitos reis gostariam de ter um filho como Viriato... a começar, meu caro Tongio, pelo Rei dos Brácaros, que hoje deve amaldiçoar a hora em que a sua família destronou o teu avô Tongétamo!
– Desejo ardentemente que continue a maldizer essa hora – resmunguei. Mas no fundo estava pouco interessado nas discórdias intemas de Brácara; outra coisa me preocupava.
– Não repitas isto – disse a Táutalo. – Eu próprio lamento não poder passar-me para a insígnia do touro. Dei o meu juramento a Cúrio e seria um desonra abandoná-lo...
Ele olhou-me. – Quem sabe? Os azares da guerra alteram a nossa vida.
II
De pé sobre o topo irregular de um rochedo, fixei o olhar no casario que se destacava, recortado contra o céu vermelho, na linha do horizonte, e procurei dominar a emoção que sentia ao rever Gadir.
Tinham-se cumprido os vaticínios. A nossa hoste precipitara-se como um furacão sobre a Bética, levando à frente as populações e as guarnições romanas colhidas de surpresa. Ninguém acreditara que os Lusitanos, dizimados por Galba, seriam capazes de levantar efectivos para empreender uma expedição como aquela e o resultado desse excesso de confiança estava patente: em poucas semanas atravessáramos a Betúria e entráramos na Turdetânia, uma terra fértil e rica, prometendo abundantes despojos. Agora, carregados com o produto das pilhagens, estávamos à vista de Gadir e dentro de dois dias, no máximo, podíamos atacar a cidade – o que me levava a pensar na melhor forma de proteger Eunois.
Seria talvez a nossa primeira batalha, pois até então apenas traváramos curtos recontros depressa resolvidos com a chacina ou a fuga do inimigo. "Uma expedição assim nem dá gosto", comentara Táutalo, que lutava por puro prazer e se lamentava de "não ter conseguido sujar a lâmina da espada".
Nos últimos dias, eu vira-o, e a Viriato, por diversas vezes. Em marcha e nos acampamentos, eles e os seus homens estavam perto das tropas de Cúrio e Apuleio. Por isso pude observar, uma vez mais, a diferença que havia entre Viriato e os outros comandantes. No seu conjunto, as nossas tropas dificilmente poderiam ser consideradas um verdadeiro exército; eram uma horda repartida em vários corpos que progrediam sem ordem, segundo o desejo ou a inspiração de cada chefe. Os mil guerreiros que cavalgavam atrás da insígnia do touro formavam, esses sim, um pequeno exército disciplinado. Quando acampavam, as tendas eram dispostas de acordo com uma ordem estabelecida; durante a marcha, os homens conheciam a posição que deviam ocupar e o que lhes competia fazer. Batedores postados na vanguarda e nos flancos da coluna vigiavam permanentemente o terreno.
Outra diferença importante estava na repartição dos despojos. Quase todos os chefes escolhiam primeiro as melhores peças e as mulheres mais jovens, o resto ficava para quem conseguisse deitar-lhe a mão e eram frequentes as rixas, não só entre guerreiros como até entre comandantes. Nada disto sucedia no acampamento de Viriato. Com uma autoridade absoluta e jamais contestada, ele distribuía os despojos segundo o valor demonstrado por cada homem e para si reservava somente alguma coisa de que tivesse necessidade: uma espada, um dardo, uma túnica – por vezes, mesmo, não queria nada. Quanto às mulheres, só deixava que tocassem nas escravas e não via com bons olhos que estas fossem maltratadas.
Em consequência, a harmonia reinava sempre entre os mil cavaleiros, para quem Viriato era não só o comandante mas também o juiz, o protector e quase um deus. Homens maduros, endurecidos por anos de guerra, obedeciam-lhe sem pensar que ele poderia ser seu filho. Ao considerar tudo isto, desejei mais uma vez poder passar sem desonra para a sua insígnia.
Foi precisamente a voz de Viriato que me trouxe à realidade:
– Sonhando com a infância, Tongio?
Encontrava-se na base do rochedo em que eu me empoleirara. Em dois saltos desci e aproximei-me dele.
– Não; pensava antes na conquista de Gadir. Vivi lá um homem, um Grego, que me ajudou. Gostaria que ele fosse poupado.
Viriato abanou a cabeça com ar de dúvida. – É difícil, quando os bandos entram de roldão numa cidade... mas fala a Cúrio. Talvez possas convencê-lo... isto, claro, se chegarmos a entrar em Gadir.
Algo na sua voz me chamou a atenção. – Porque dizes isso? Pensas que não vamos conseguir?
Ele encolheu os ombros. – Não sei... penso que as coisas têm corrido bem demais. Os Romanos podem ser apanhados de surpresa, mas não desistem e tentam sempre vingar aquilo que consideram uma afronta. Além disso, são poderosos.
– Bom – objectei – nós varremos a Betúria e a Turdetânia quase sem luta!
– Precisamente. Estamos bem dentro de território sujeito a Roma, às portas da maior cidade da Ibéria. Os Romanos não podem permitir que isso aconteça. Enfim, veremos o que nos traz o dia de amanhã.
Nos acampamentos da hoste ardiam já as fogueiras para a noite e os homens preparavam a ceia. Preferi ignorar as dúvidas de Viriato e preocupei-me somente com a melhor forma de proteger Eunois quando entrássemos em Gadir. Falaria a Cúrio; um grupo dos nossos podia tentar alcançar a sua casa antes dos outros. Era o mínimo que eu devia fazer para pagar a amizade e a honestidade com que Eunois me tratara. Confiante no meu plano, comi e fui dormir.
Acordei bruscamente com o ruído de vozes soltando imprecações e o tinir de armas a serem empunhadas à pressa. "Um ataque", pensei. Mas quando saí da tenda – a noite clareava e as fogueiras estavam quase apagadas – só vi homens correndo de um lado para outro. Num magote, avistei Táutalo, Viriato e Apuleio; Cúrio chegava nesse momento. Corri para lá.
Os homens apinhavam-se à volta dos corpos ensanguentados de dois legionários romanos. Das falas desencontradas, depreendi que haviam sido apanhados quando passavam furtivamente perto do nosso acampamento, seguindo na direcção de Corduba. Viriato, irritado, censurava Apuleio porque os captores – guerreiros sob o comando do príncipe – tinham-se apressado a trucidar os legionários em vez de os trazer vivos.
– Os emissários nunca se matam – dizia ele, forçando-se à contenção – pelo menos até revelarem as mensagens que levam. Nós precisávamos dessas informações!
– Bem – resmungou Cúrio, mergulhando os dedos na barba – agora é tarde para os interrogar. De qualquer modo, o recado não chegara ao destino e isso já é uma boa coisa... vocês – acrescentou virando-se para os homens que haviam interceptado os Romanos – merecem pelo menos os despojos.
Fascinado sem saber porquê, fiquei a vê-los revistar e despir os corpos. Num deles encontraram algumas moedas de prata e de cobre, que logo foram repartidas. De repente, vi que um dos guerreiros tinha nas mãos um objecto que me era familiar. Examinou-o, certificou-se de que não era feito de metal precioso e lançou-o para o chão. Involuntariamente dei um grito e precipitei-me sobre ele.
O homem que o atirara olhou-me espantado. – Que é? Isso não tem valor e se tivesse pertencia-me!
Devagar, levantei até à altura dos seus olhos a tabuinha dupla cujas faces interiores estavam revestidas de cera gravada.
– Isto é a coisa mais preciosa dos despojos, mas não te pertence nem teria utilidade para ti. É a mensagem que eles levavam.
Apuleio começou a falar, no tom de um garoto com birra:
– E daí? Quem vai entender o que está escrito...
Deixei de lhe prestar atenção porque alguém mais perto de mim chamou tranquilamente: – Tongio...
Encarei Viriato, cujos olhos cintilavam.
– Tu sabes ler, não é verdade? E falas a língua dos Romanos...
– Claro que sim. Perdi bastante tempo de jogos e brincadeiras para aprender Latim e Grego... e outras coisas.
Quebrei o selo. A luz era já suficiente para decorar a mensagem e li-a em voz alta perante o espanto dos guerreiros que me cercavam, homens para quem a escrita era um mistério próximo da magia. A carta estava assinada por um tribuno militar, provavelmente o comandante da guarnição de Gadir, e destinava-se a um pretor Caio Vetílio, em Corduba. O tribuno dizia que os Bárbaros (nós) podiam já ser avistados do alto das muralhas gaditanas; a cidade estava em perigo e pedia-lhe que avançasse urgentemente para o Sul "com as novas tropas".
– Quem é esse Caio Vetílio? Nunca ouvi falar... – rosnou Apuleio. Cúrio disse o mesmo e ambos se voltaram para Viriato como se este devesse dar-lhes uma resposta. Ele sacudiu a cabeça e disse num tom vagamente sarcástico:
– Também nunca lhe fui apresentado, mas não é difícil compreender de quem se trata. Com certeza chegou há pouco de Roma e, como é pretor, estou quase certo de que é o novo governador romano para o território que eles chamam a Hispânia Ulterior. Está em Corduba, com tropas frescas, e isso basta para alterar os planos; Cúrio... – a voz de Viriato tornou-se tensa e velada – é preciso reunir um conselho imediatamente. Já não podemos atacar Gadir.
Apuleio protestou, mas Cúrio, após reflectir um momento, gritou uma ordem e logo as trompas soaram convocando os chefes. No meio da agitação, Viriato aproximou-se de mim.
– Táutalo contou-me – disse – que gostarias de te juntar a nós. Ainda pensas da mesma forma?
Respondi que sim e que só o compromisso assumido perante Cúrio me impedia de solicitar a admissão.
Viriato deu uma leve palmada no meu ombro: – Aprecio os teus escrúpulos. Há talvez uma forma de satisfazer esse desejo sem quebra de palavra... espera uns dias, vou ver o que posso fazer.
Quis agradecer-lhe mas ele interrompeu-me: – Não o faria se não pensasse que és uma aquisição importante... sim, deixa esse ar de espanto. Sabes lutar, embora não tenhas muita experiência; há decerto guerreiros melhores que tu, mas nenhum deles sabe ler e poucos são os que conhecem outra língua que não seja a que aprenderam com a mãe. Qualquer coisa me diz, Tongio filho de Tongétamo, que serás muito útil.
Os comandantes tinham começado a chegar, intrigados ou irritados, segundo os seus temperamentos, com a chamada a conselho. Sobretudo os cinco chefes supremos pareciam considerar ultrajante que mais alguém se desse ao luxo de fazer uma convocação. Porém, as notícias, logo que foram conhecidas, levaram-nos a esquecer os pruridos.
Não assisti ao conselho, mas contaram-me como decorreu. Até mesmo os mais teimosos compreenderam que não era possível tomar Gadir. Arriscávamo-nos a ser atacados pelas costas durante o cerco e se entrássemos na cidade bastaria que as tropas do novo pretor chegassem entretanto para ficarmos encurralados em Kotinoussa, tendo o mar como única saída. Muitos dos nossos nunca haviam entrado num barco e, de resto, os Romanos e os Gaditanos usariam todas as embarcações disponíveis para fugir à nossa chegada.
Afastada esta ideia, restava decidir o que faríamos. Viriato propôs que nos dispersássemos em grupos e tentássemos obter mais informações sobre os reforços do inimigo; outros queriam avançar em direcção a Corduba e enfrentar Caio Vetílio, confiados na reputação de invencibilidade que ganháramos ao entrar na Betúria.
Esta última opinião prevaleceu. Para compensar os homens pela perda da pilhagem de Gadir, decidiu-se que saquearíamos a cidade de Urso, que ficava no itinerário para Corduba.
Encontrámos as tropas de Vetílio mais cedo do que esperávamos. Um dia depois de termos interceptado os mensageiros de Gadir, a nossa vanguarda travou um breve recontro com cavaleiros romanos surgidos inesperadamente de um bosque.
Desta vez, o inimigo não entrou em pânico e não fugiu. Logo nos primeiros momentos de combate tornou-se claro que lutávamos com tropas bem diferentes daquelas que tínhamos encontrado até então. Sofremos bastantes baixas e o próprio Cúrio esteve em perigo; Viriato, que contra o seu hábito se aproximou e misturou os seus homens com os nossos, salvou-lhe a vida trespassando com um dardo o decurião que o atacava pelas costas. No final, a cavalaria romana reúrou em boa ordem.
Enquanto os guerreiros recuperavam os corpos dos camaradas para lhes prestarem as honras fúnebres, Cúrio foi ter com Viriato e estendeu-lhe a mão:
– Estou em dívida contigo e não gosto de ficar a dever a minha vida a alguém, mesmo quando esse alguém és tu. Se concordares, escolherás o que quiseres nos despojos que trago; ou, quando saquearmos Urso, ficarás com a minha parte.
Viriato soltou uma gargalhada. – Agradeço-te, mas falas com demasiada confiança do saque de Urso. Se queres pagar-me, podes fazê-lo já, sem perder as riquezas que ganhaste.
Virou-se para mim e chamou: – Tongio! – aproximei-me corando, ao perceber a sua ideia.
– Este jovem guerreiro – disse Viriato – é um antigo conhecimento meu. Na verdade, devo-lhe um belo cavalo e ainda não lho paguei... dispensa-o do Juramento, permite que ele passe para o meu grupo e estamos quites.
Foi a vez de Cúrio largar a rir.
– Se o queres, assim seja! Tongio, liberto-te do compromisso; a partir de agora, o teu comandante será Viriato filho de Comínio.
Ainda a rir, afastou-se. Encarei o meu novo chefe com os olhos húmidos de emoção.
– Não sei o que posso dizer. Compreendo agora... porque te aproximaste tanto de Cúrio durante a luta. Pensavas...
– Pensava arranjar um meio de o pôr em dívida para comigo? E porque não? Disse-te já que não é difícil arranjar um bom combatente, mas conseguir um intérprete – e letrado, ainda por cima – é outra questão.
– Bem, mas espero que me deixes combater!
O sorriso desapareceu do seu rosto. – Podes estar certo disso. Todos teremos de combater... os próximos dias não vão ser fáceis, Tongio, e continuo a pensar que é um erro prosseguir o avanço para Urso.
O meu alistamento foi saudado alegremente pelos guerreiros que eu já conhecia. Senti-me logo à vontade – mais que com os homens de Cúrio e Apuleio, que se mantinham agarrados aos seus preconceitos de tribo. As tropas de Viriato, formadas por uma mistura de Lusitanos da planície e das serras, Igeditanos e Vetões, eram mais fiéis ao espírito de corpo que à solidariedade tribal.
Nessa mesma noite, durante uma reunião com vários chefes, Viriato voltou a defender, em vão, a ideia de que deveríamos evitar um ataque a Urso. Eu estava perto e ouvi a discussão. Os cavaleiros que encontráramos, argumentou ele, eram a guarda avançada de Caio Vetúlio. Tinham dado provas de experiência e disciplina superiores às dos nossos e se o exército do pretor era formado por tropas com aquela qualidade, não devíamos arriscar uma batalha campal.
Porém, a ânsia da pilhagem era mais forte que a voz do bom senso. No dia seguinte, adoptámos já, em marcha, a ordem de batalha, com a cavalaria à frente para forçar as linhas inimigas. Nesta formação, o grupo de Viriato ocupava a ala direita. Avançávamos numa região povoada em tempo de paz, mas cujos habitantes haviam fugido para as matas e cabeços fortificados, pressentindo a aproximação da guerra. Apenas algumas cabeças de gado – bois e cabras magros e doentes, que não valia a pena conservar – vagueavam desamparados pelos campos. Urso devia estar pejada de refugiados, homens e animais.
O Sol tombava a pique e muitos dos nossos tiraram os capacetes para melhor suportar o calor. Viriato, fiel ao seu costume, enviara batedores para reconhecer o terreno à nossa frente. Voltaram acompanhados por um pequeno grupo de cavaleiros armados, habitantes de Urso, que tinham decidido juntar-se a nós, ou por ódio aos Romanos ou por pensarem que éramos os mais fortes; os seus chefes, dois homens de cabelos grisalhos chamados Audax e Minuro, conferenciaram com Viriato, que antes de os enviar aos cinco generais os interrogou longamente. O exército do pretor, disseram, estava já perto, barrando o caminho para Urso; eram cerca de dez mil homens.
– Estamos em igualdade de forças – murmurou Táutalo, que cavalgava ao meu lado – mas Viriato tem razão: são legiões chegadas de Roma, frescas e bem treinadas. A brincadeira acabou... ora, tanto melhor, vamos enfim ter uma luta a valer.
O dia terminou sem que víssemos sinais dos Romanos. Nessa noite, não houve fogueiras e tivemos de contentar-nos com carne salgada e pão de bolota. De madrugada, Viriato mandou acordar os seus homens para lhes dar instruções: em caso algum deveríamos abandonar a formação, mesmo se os Romanos fugissem. Toques de trompa especiais dariam as ordens necessárias durante a batalha. E acima de tudo: não haveria tempo para sacrificar vítimas e ler presságios (Táutalo confidenciou-me, mais tarde, que o próprio Viriato fizera um sacrifício durante a noite e que os sinais eram desfavoráveis).
Como resultado, ao nascer do Sol estávamos a cavalo e em movimento, o que forçou o resto das tropas a apressar os preparativos, para grande irritação dos outros chefes. A manhã ia alta quando a formação ficou terminada. Pouco depois avistámos as muralhas de Urso – entre elas e nós o exército romano esperava.
** *
Os veteranos poderiam talvez descrever a batalha e explicar os erros que nós cometemos. Tudo me pareceu caótico logo de início, pois tanto quanto posso recordar começámos mal: os cavaleiros lusitanos, entoando os seus impressionantes hinos de guerra, precipitaram-se sobre as legiões mas fizeram-no indiscriminadamente. Antes de atingirem as linhas inimigas, uma chuva de dardos lançados pelos velites abateu-se sobre eles e dizimou-os. Depararam então com uma muralha de lanças empunhadas pelos triários e enquanto procuravam em vão abrir uma brecha os esquadrões da cavalaria romana atacaram os nossos flancos. A ala comandada por Viriato resistiu, mas o flanco oposto cedeu à pressão e em breve o combate se transformou numa terrível mortandade. De todos os corpos de tropas lusitanas só o nosso manteve a formação, cumprindo as ordens de Viriato. Com este à frente, lançámos uma carga temerária para cobrir a fuga dos outros. Essa carga, que os Romanos já não esperavam, salvou muitas vidas, porém a derrota era completa. No campo ficaram milhares de Lusitanos e só o nosso grupo saíra ileso, por favor dos deuses – e porque ninguém fugira.
Um trabalho esgotante estava ainda à nossa espera: tentar reunir os fugitivos. Cúrio e Apuleio tinham conservado à sua volta algumas centenas de homens e com eles procurámos estabelecer uma linha de protecção. Ao cair da noite, cobertos de suor, de pó e de sangue, reunimo-nos num pinhal para discutir o que havia a fazer. Tínhamos já uma ideia mais ou menos exacta da situação: connosco encontravam-se dois mil homens a cavalo, alguns com ferimentos mas capazes de se mexer. Os feridos mais graves estavam condenados a receber o golpe de misericórdia dos legionários, que entretanto pareciam ter regressado às posições que ocupavam antes da batalha.
– É estranho! – exclamou Viriato limpando com a mão o Suor que he cobria a testa – seria de esperar que nos dessem caça.
– Têm medo de se aventurar em terreno desconhecido – comentou Apuleio, que combatera como um animal feroz e acabara por quebrar a espada contra uma couraça romana – mas agora devemos aproveitar essa vantagem para encontrar um refúgio. Audax, um dos homens de Urso, interveio:
– Conheço um bom lugar, uma povoação abandonada, perto daqui. As muralhas ainda estão de pé. É um lugar muito antigo e não sei se há nele alguma maldição.
– Não pode haver pior maldição que a que nos caiu hoje em cima – rosnou Cúrio. – Se apanho a jeito os sacerdotes que nos leram os presságios nos Hermínios, vou dizer-lhes umas palavrinhas que não esquecerão tão depressa! Viriato, pensativo, acariciava o pescoço do seu cavalo.
– Mas se nos refugiarmos aí – lembrou – arriscamo-nos a ficar cercados!
Apuleio fez um gesto de impaciência que agitou o seu manto de peles, rasgado por inúmeras espadeiradas.
– E que outra solução resta? Precisamos de um sítio para passar a noite, para reunir os nossos e tratar dos feridos. Além disso, está a escurecer.
Decidiu-se que Audax guiaria a maior parte dos homens para a povoação deserta enquanto Viriato, com uma centena de guerreiros, procuraria encontrar mais fugitivos antes de se lhes reunir, guiado por Minuro, o amigo de Audax.
Acompanhei Viriato. Durante grande parte da noite, iluminados apenas pelo luar, batemos a região. O campo de batalha estava-nos interdito porque era guardado por patrulhas romanas (quando nos aproximámos, ouvimos os gritos dos nossos companheiros caídos, que os legionários degolavam). No meio daquele pesadelo, foi ainda possível encontrar e reunir um milhar de guerreiros que vagueavam pelos campos ou se escondiam nas matas. Enfim, dirigimo-nos para o refúgio.
A antiga cidade estava quase intacta, só a cintura exterior se encontrava arruinada. Um arrepio percorreu-me as costas quando vi as muralhas e as velhas casas de forma circular, testemunhando uma época morta havia muito. Que espíritos habitariam ali? Como aceitariam a nossa presença? Minuro garantiu-nos que muitos habitantes da região, quando iam à caça, pernoitavam naquele local sem serem molestados.
Quando entrámos no recinto fortificado já este se encontrava cheio de homens e cavalos. No pequeno largo fronteiro ao templo – este sem telhado nem imagens sagradas – estavam deitados os feridos, que alguns homens, conhecedores dos rudimentos da arte de curar, procuravam socorrer como lhes era possível. Sentia-me capaz de dormir um ano inteiro, de exausto que estava; contudo, o espectáculo de Viriato e Táutalo (ambos tão fatigados como eu) organizando os turnos de vigia e procurando estabelecer um mínimo de ordem levou-me a querer mostrar que também estava à altura da emergência. Conhecia um dos homens que tratavam dos feridos, um jovem Vetão Chamado Arduno, que pertencia ao nosso grupo. Fui ter com ele e ofereci os meus préstimos. Arduno ergueu para mim os olhos surpreendidos.
– Todos os dias me espantas, Tongio! Então, além de saber ler também és curandeiro?
– Não propriamente, mas quando vivia no santuário de Endovélico ajudava a minha mãe a cuidar dos peregrinos.
– Muito bem – respondeu ele – então, ao trabalho! – e entregou-me uma ervas, que fora desencantar não sei onde, para que eu fizesse com elas um unguento.
Atarefámo-nos a lavar feridas, improvisar pensos e distribuir a pouca' água que havia pelos homens que ardiam em febre. Finalmente, quando tínhamos feito o que era possível fazer, parei e encostei-me a uma parede, tão cansado que tinha medo de cair. Um pequeno odre de barro surgiu debaixo do meu nariz.
– Bebe – disse Táutalo – estás a precisar disto. Era cerveja de má qualidade mas soube-me como se fosse néctar.
Agradeci-lhe, devolvi-lhe o odre e perguntei:
– Já contaram os sobreviventes? Ele fez um gesto afirmativo.
– Perdemos mais de metade dos nossos. A expedição acabou, Tongio, e teremos muita sorte se conseguirmos sair vivos daqui.
– Mas os Romanos não nos perseguem...!
– Pois não e isso pode ser mau sinal. Enfim, é uma preocupação para amanhã. Agora, vai dormir. Assim fiz. Dormi profundamente, mas por pouco tempo. Acordei ao romper da aurora e logo me apercebi de que alguma coisa se passava, porque tanto as muralhas como os rochedos – havia-os dentro do recinto da cidadela – estavam cobertos de homens que, em silêncio, olhavam para o exterior. Levantei-me e subi à muralha.
A luz da manhã deixava ver os campos em redor. E para onde quer que olhasse, só via legionários romanos. Estávamos cercados.

João Aguiar, A Voz dos Deuses, 13ª ed., Porto, Asa, 1992, pp. 125-151.

11/12/2005

Dos tempos de Viriato... no Fontelo


Deixaram aqui, porquê? Onde está o meu chefe Viriato?

03/12/2005

Lá por fora não me esquecem


Viriato em Zamora

Crónica de amigo... do Viriato

Notas & Comentários

Mariano Benlliure
Passou em 8 de Setembro o 1º centenário do nascimento deste insigne escultor, glória da vizinha Espanha e imortal da arte universal.

Nas referências da imprensa ao acontecimento, não deixou de justamente citar-se entre as obras primas do saudoso artista, o momento de Viseu, da Cava do Viriato. Pode, com efeito, discutir-se a verdade ou rigor históricos da concepção do artista, assim da figuração do caudilho lusitano mais componentes do grupo escultórico, tal qual se mostram, meio escondidos, na atitude de arremeterem de surpresa as legiões romanas invasoras; mas ninguém pode negar o primor da plastização e a arte perfeita do conjunto no todo e no pormenor, a denunciarem a dedada inegulável desse mago da escultura que foi o consagrado artista madrileno.
(...) desejamos também frisar, mais uma vez nestas páginas, a reconhecida necessidade de dar ao monumento que nos honra uma melhor arrumação, libertando-o do fundo do arvoredo sobre que morre o bronze das figuras, cujas proporções sob a massa desmesurada dos dois lanços da Cava e extensão do local se amesquinham lamentavelmente. Para mais o monumento acha-se mutilado, uma vez que, pela impossibilidade de acomodar no mesmo plano do conjunto a simbólica loba romana que o completava e lhe dá sentido histórico, houve que a remover para o Parque do Fontelo, onde, isolada, também ela é peça sem simbolismo nem qualquer significado. Isto que foi doloroso para o insigne artista e não menos para Almeida Moreira que tanto patrocinou então a preferência dada a Mariano Benlliure, ficou assim mesmo, por circunstâncias prementes da ocasião não permitirem então remediar o erro que inicialmente se não vira.
Ficou assim e... assim está. Todavia, como no caso doutros monumentos de Viseu, também Viriato de Benlliure reclama a atenção das entidades locais para que oportunamente se remova a melhor e mais conveniente local.
(...) Há simplesmente que, como em tudo o que mais, também no campo da arte e nos domínios do espírito, tem a sua parte o demo do dinheiro... e sob esse aspecto, e para quem manda, a inoportunidade, é sempre manifesta...

Lucena e Vale
In “Revista Beira Alta”, Revista trimestral para a publicação de documentos e estudos relativos às terras da Beira Alta, Volume XXII, 1962, Fascículos III e IV, 3º e 4º Trimestres, Viseu


Com toda a humildade confesso que me permito discordar da opinião reafirmada, à data, pelo muito ilustre Dr. Alexandre de Lucena e Vale, essa figura impar da cultura e sociedade viseenses. O Dr. Alexandre (Viseu, 8 de Fevereiro 1896/1 Março de 1978) foi um primoroso escritor, conferencista, historiador, municipalista, crítico literário, etnógrafo, arqueólogo e poeta. Recusou diversos convites para cargos políticos, de relevo, em Lisboa e dedicou-se à sua família, a Viseu e à sua Beira. Foi autor, entre outras obras de: “Viseu Monumental e Artístico”- 1947 e “Beira Alta Terra e Gente” – 1958.
Sou de opinião que o monumento estava, até há poucos anos, bem enquadrado com a impropriamente designada, desde o séc. XVI, e que assim ficará para o futuro - “Cava de Viriato”. Se foi por falta de verba que o monumento não foi transferido para outro local, ainda bem. Quanto à loba, fica muito bem onde está, no penedo sobre a Fonte de São Jerónimo, no Fontelo.
Já estaríamos, certamente, de acordo na condenação do abandono a que continuam votados a Mata do Fontelo, a Cava e o mutilado, enterrado e invisível à noite - Monumento a Viriato, e também em denunciar o desperdício e o mau gosto das obras realizadas no Campo de Viriato (Campo da Feira de São Mateus), túnel e praça. Agora que abunda o dinheiro, muitas Câmaras Municipais, fazem obras de mau gosto e sem respeito pelos sinais do passado.
É caso para dizer – se é para estragar... é melhor ficarem quietos!
Não foi este o caso, mudaram para muito pior, infelizmente.
Amigo do Viriato


Fecharam-me na rede e deixaram aqui ficar o caixote...